Foto: Ricardo Moraes
A quarentena é necessária como o mais eficaz método de contenção do contágio pelo coronavírus. Há quem não possa ficar em casa porque, como profissional da área da saúde, está na linha de frente de combate à pandemia. Há também pessoas que precisam pisar as ruas diariamente porque integram outros serviços essenciais.
A pergunta que se faz é: por que tanta gente que não tem a menor necessidade de furar o distanciamento social transgride as regras do isolamento? Tais indivíduos vão a parques, e vão a praias, e vão às avenidas, a maioria sem máscaras ou demais medidas de proteção. Uma resposta é imediata: temos um presidente da República que confunde e atrapalha o Brasil acima de tudo e até Deus acima de todos, pregando o fim da quarentena.
Outro argumento que serve à indagação proposta é igualmente simples: em um País no qual os donos do poder burlam, em benefício próprio, o maior número de regras que conseguem, onde a impunidade rola solta e o exemplo que vem de cima é péssimo, por que o mais comum dos cidadãos vai se trancar? Mesmo sabendo que pode se contaminar e até morrer, ele vai querer dar um rolê. É o mesmo fenômeno que se vê nos bailes funks e pancadões nas periferias das grandes cidades. Na comunidade onde esses caras moram, não tem sequer saneamento básico. Como querer que eles entendam que devem se proteger? Fica difícil lavar as mãos quando não se tem água encanada, e o álcool gel, então, é como o caviar na letra do genial Zeca Pagodinho: “você sabe o que é caviar? Nunca vi nem comi, eu só ouço falar”.
A excitação pelo proibido
Fora essas considerações políticas e sociológicas, há, no entanto, um mais calado sentimento que leva à transgressão e que não compõem somente a alma do brasileiro — mas, isso sim, da espécie humana. De volta ao Brasil, tentemos mergulhar na cultura e na emoção da transgressão que se arrasta há séculos. Para se ter uma ideia, no século XVII, quando os holandeses tornaram o Brasil uma de suas colônias, o bispo e historiador Caspar Barleus, um dos mais cultos e notáveis integrantes da missão de Maurício de Nassau, observando o comportamento dos brasileiros que a tudo transgrediam com prazer, assim escreveu: “ultra aequinoxialem non peccari”. A frase foi citada primeiramente pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda no clássico “Raízes do Brasil” e, numa segunda ocasião, pelo seu filho Chico Buarque.
A tradução do latim para o português diz tudo: “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Vindo para os dias de hoje, esse vale tudo que atravessou o tempo se traduz também na burla ao isolamento: em São Paulo, no feriado de 1º de maio, registrou-se a mais baixa taxa de adesão à quarentena: 46% da população, enquanto o recomendado pela OMS é 70%. No Rio de Janeiro, na semana que antecedeu o mesmo feriado, 60% ficaram em casa.
“As chamadas pequenas corrupções do dia a dia são comportamentos errados, mas não tão sérios a ponto de serem entendidos como crimes. E, por isso, quando são reproduzidos, acabam sendo normatizados”, disse à ISTOÉ o psicanalista Fabio Sousa, pesquisador da cultura e do comportamento brasileiros. Assim se explica, por exemplo, o gostinho de se passar por baixo de uma faixa de interdição na praça diante do Estádio do Pacaembu, em São Paulo, um dos mais famosos do País. Detalhe: lá, aos fins de semana, tem gente jogando bola, mães passeando com bebê no carrinho, famílias fazendo piquenique.
A mesma coisa ocorre nas orlas brasileiras e nas áreas verdes de lazer. “É o inconsciente cultural coletivo”, diz Sousa. Essa é a visão vinda do famoso psicanalista suíço Carl Jung. Igualmente o psicanalista francês Jacques Lacan teorizou sobre a questão: “cometer a pequena transgressão é nosso destino”, é inerente a alma humana. “Não devemos cometê-la, mas, ao não fazê-la, traçamos o nosso trágico destino de quem quer transgredir e não o faz”, escreveu Lacan. Ou seja: de alma e corpo somos transgressores e, como já explicado acima, esse gostinho foi histórica e culturalmente cultivado com primor no Brasil. Dê-se a palavra a quem melhor entende do assunto: um burlador de quarentena, como o paulista T.P. Abre-se ele: “não dá, eu acabo desrespeitando pequenas regras. Quando deparo com o proibido, de tanta euforia sinto minha alma saindo do corpo”.
Isto é
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