A desmilitarização não deve ocorrer somente nas estruturas da PM, todo o sistema de segurança pública deve ser desmilitarizado.
Nos últimos anos, a principal palavra de ordem de todos os protestos organizados pelos grupos progressistas e dos movimentos do campo da esquerda tem sido: “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”!
Como policial, posso dizer que essa é uma das piores frases já pensadas pelos movimentos sociais e o que ela gera é exatamente o processo inverso ao qual ela busca combater. É uma frase que, em verdade, aprofunda ainda mais o militarismo no interior das instituições e reforça a aversão dos trabalhadores da Polícia Militar às manifestações do campo democrático.
Temos que refletir sobre esse grito, invariavelmente propagado frente-a-frente como os policiais militares, em meio a protestos nos quais estes profissionais foram deslocados pelo seu comando para, em tese, evitar qualquer tipo de vandalismo ou atos ilícitos.
Estes policiais, muitas vezes, ficaram horas de pé, sem alimentação, passando calor, com roupas pesadas, com salários atrasados, baixas remunerações e com seus problemas particulares e, em meio ao seu trabalho, são confrontados com a famosa palavra de ordem que, em verdade, diz que a instituição a qual pertence esse indivíduo que prestou concurso público, passou diversos meses em uma academia de polícia, que formou laços de amizade e companheirismo, deve ser extinta.
Qual o efeito prático no mundo real e o que vem sendo demonstrado na história brasileira recente? Um aprofundamento do militarismo nas polícias e que se alastra para instituições de ensino e para todos os órgãos de segurança do país. Muito disso se dá pelo oportunismo dos conservadores em capturar a necessidade de valorização desses profissionais, que se sentem tão desprestigiados no seu dia-a-dia. Através do discurso de legitimação de qualquer ação policial, e da suposta manutenção da ordem assegurada pela polícia, o conservadorismo avança a passos largos e se consolida dentro de todas as instituições da segurança pública e em especial na Polícia Militar.
Mas afinal, a Polícia Militar tem que acabar? A resposta é complexa, mas é fato que o militarismo no interior das policiais é algo que já se demonstrou equivocado e possui poucos pares nos países ditos desenvolvidos.
Em primeiro lugar, é importante frisar que a Polícia é um mal necessário para que as sociedades possam evitar a barbárie e a autotutela. É a chamada ultima ratio entre o caos absoluto e a civilização. Porém, ela deve estar inserida no interior do âmbito democrático e de respeito aos cidadãos, que ao mesmo tempo lhe devem respeito, nesta simbiose acordada dentro do chamado “contrato social” assinado por todos que vivem dentro de um determinado Estado.
Por outro lado, a lógica militar é utilizada para aniquilar inimigos em confrontos contra forças agressoras que objetivam dominar e subjugar uma nação. Seu objetivo é, através da hierarquia extrema, e disciplina quase robótica, dar respostas violentas, rápidas, lesivas e de eliminação dos oponentes da forma mais avassaladora possível. Dentro da lógica militar, quase nunca é pensada a prisão de alvos e sim a sua eliminação física.
Isso transportado para a lógica policial cria um sério problema, quando os próprios cidadãos passam a serem vistos como inimigos a serem abatidos. Temos dois dados alarmantes e representativos dessa lógica. O primeiro é de que temos uma das polícias que mais mata no mundo e o segundo é que estes mesmos policiais são os que mais morrem no mundo. Típico dado estatístico retirado de uma guerra.
A tragédia de Paraisópolis, em São Paulo, onde 9 jovens morreram pisoteados após uma ação truculenta da Polícia Militar daquele estado, o homicídio da menina Ágatha no Rio de Janeiro, que também possui o envolvimento de militares nessa triste morte, são demonstrações de que a lógica de eliminação do inimigo, que invariavelmente é reconhecido como o pobre e negro da periferia, está se aprofundando dentro das instituições a partir dos discursos e da política implementada pelos governos fascistas instalados no Planalto e em diversos estados da federação.
Porém, os próprios policiais que recebem incentivos para combaterem o “mal” e colocarem sua vida em risco sob o discurso do “herói”, são vítimas desse sistema que faz com que as patentes mais baixas, como soldados e sargentos, recebam remunerações vergonhosas, sejam obrigados a executar ordens muitas vezes absurdas de seus superiores e são penalizados até mesmo com a prisão no caso de qualquer ato de suposta insubordinação. Não podem se organizar em sindicatos, não podem paralisar quando deixam de receber os seus proventos, pois estão sob o manto de um regimento opressor que é facilmente manipulado pelo governante do momento.
Esse é um dos principais motivos pelos quais o militarismo é mantido em instituições policiais. São servidores públicos muito mais fáceis de serem explorados e colocados na linha de frente para a sustentação institucional dos políticos, principalmente quando a população começa a reagir frente aos abusos e perdas de direitos básicos. Não por acaso, Bolsonaro defende a excludente de ilicitude no caso das ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ou que o pacote “anticrime” de Sérgio Moro fale também nas excludentes de ilicitude da legítima defesa, legitimando todo e qualquer abuso das forças de segurança.
Psicologicamente, essas políticas trazem uma sensação de que esses governantes trabalham em prol da polícia, evitando que os bons policiais, que trabalham no limite da civilização, combatendo o que há de pior na sociedade, tenham respaldo no seu trabalho dentro da legalidade. Porém, tais políticas visam proteger os maus policiais, justamente aqueles que agem à margem da lei e necessitam de respaldo absoluto de governantes demagogos que, ao fim e ao cabo, os atacam com reformas previdenciárias e trabalhistas, pagando um salário de fome e lhes oferecendo uma aposentadoria de dificuldades.
Por outro lado, o afastamento das forças do campo democrático, e da esquerda, faz com que cada vez mais as instituições policiais sejam dominadas por um discurso populista que vê em todo movimento social, e em qualquer manifestação de massas populares, um inimigo da suposta ordem e agentes do caos e do crime. A esquerda falha no diálogo e falha em enxergar que os policiais também fazem parte da classe trabalhadora, que também são explorados e que devem ter seu protagonismo como trabalhadores reconhecido.
Para isso, é necessário que palavras de ordem sejam modificadas e que pontes sejam criadas. Pontes essas sempre derrubadas a cada avanço de governos autoritários que se utilizam dos policiais, principalmente dos militares, para a manutenção do seu status quo, mesmo que para isso esses trabalhadores passem por humilhações e graves privações.
Por fim, a desmilitarização não deve ocorrer somente nas estruturas da Polícia Militar, mas todo o sistema de segurança pública deve ser desmilitarizado. Isso não significa o fim da hierarquia e disciplina e não significa desarmar as polícias ou retirar a sua autoridade. É simplesmente reforçar um ambiente democrático e de legitimidade do uso da força, que favorece todos cidadãos e, principalmente, os próprios policiais.
Por: Carta Capital
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